ENRIQUE VILA-MATAS LA VIDA DE LOS OTROS 
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Açores
Açores




Ilha do Pico
Ilha do Pico




Urbano Bettencourt
(Ilha do Pico, Açores, 1949).

Lecciona na Universidade  dos Açores. Têm-lhe merecido particular atenção as literaturas insulares, sobre as quais já proferiu conferências  em Cabo Verde, Madeira, Canárias e Açores. Colaboração frequente em revistas da especialidade, no país e no estrangeiro.  Poesia e narrativa:   Raiz de Mágoa (1972); Marinheiro com residência fixa  (1980);   Naufrágios Inscrições (1987); Algumas das Cidades (1995); Lugares, sombras e afectos (2005);  Santo Amaro Sobre o Mar  (2005); Antero (2006). Ensaio:  O Gosto das Palavras, 3 vols. (1983, 1995, 1999); Emigração e Literatura (1989); De Cabo Verde aos Açores – à luz da «Claridade  (1998); Ilhas conforme as circunstâncias (2003).




DESDE A CIDADE NERVOSA

URBANO BETTENCOURT
Para Paula Massot

O Pico é para saborear e deve ser procurado sobretudo naqueles recantos do interior e da beira-mar de que fogem os taxistas de pé ligeiro que te querem despejar sobre o cais a tempo de apanhares o almoço na cidade em frente; por isso, se queres conhecer o Pico, vai aos Açores em Agosto e eu mostro-te o lado íntimo da ilha. Terá sido mais ou menos isto o que eu disse a Enrique Vila-Matas em mil novecentos e noventa e sete, quando nos encontrámos no Funchal para participar no Colóquio «As Ilhas e a Mitologia». Na Feira do Livro, uma primavera suave cobria de flores de jacarandá os stands e os expositores, por entre os quais Federico Mayol fazia circular a sua perplexidade e o súbito espanto de uma auto-descoberta (nós é  que não reparámos nisso).

E voltei por certo a afirmar-lho quando, no ano passado, ele me apareceu inesperadamente em Ponta Delgada para visitar o túmulo de Antero, nessa tarde em que a cidade (nervosa) despejava na Avenida a fina-flor do seu lixo carnavalesco. Entre o túmulo e o banco sob a âncora a  que nenhuma esperança acode, com uma viagem pelo sul até ao chão que primeiramente pisaram os náufragos de há meio milénio, houve ainda o tempo de uma saltada ao Faial para ver como poderia a realidade do Peter’s Bar enfrentar a verdade dos recuerdos inventados no rasto de Tabucchi.

Nos começos deste ano, a voz do Enrique anunciava-me do outro lado do telefone: «Urbano, estoy en Pico.» O calendário registava mais uma vez a semana de Carnaval. Já não lhe falei de Agosto.

E depois de ler o seu mais recente livro, Desde la ciudad nerviosa (Alfaguara, 2000), sei definitivamente  que não voltarei a propor-lhe esse mês para um reencontro na minha ilha. Afinal, Agosto é o tempo de gozar todas as comodidades e confortos de Barcelona, imobilizado em casa e pensando em quantos por esse mundo queimam os pés na praia ou, em paisagens bucólicas, se afundam numa poia de vaca. É o tempo de, melancolicamente,  pensar também naqueles que, iludidos talvez pela toponímia espanhola, acabam por desembarcar em ilhas onde até os pastores são alemães e donde enviam nos postais turísticos os derradeiros e aflitos apelos de quem vai afogar-se para sempre. E é, finalmente, o tempo de escrever a Jean-Paul Sartre, dizendo-lhe que a literatura pode servir a um escritor para vingar-se dos amigos que o invejam e lhe enchem a casa  com os nada invejáveis postais de amanheceres em países remotos ou pores-do-sol em casas de cinzentos países civilizados. E pode servir, acrescentaria eu, para iluminar a noite das cidades, nervosas umas, invisíveis outras, quem sabe se inabitáveis quase todas, como diria U. Eco, ou ainda para conduzir-nos pelos labirintos da palavra do outro e reorganizar assim a memória do mundo ao lado de Italo Calvino e de quantos as crónicas-ficções de Enrique Vila-Matas a cada passo convocam, na constante preocupação de refazer a gramática da escrita  e das diferentes linguagens em que somos ditos e nos dizemos.

Sei definitivamente que não voltarei a propor a Vila-Matas uma viagem ao Pico em Agosto. Mas continuarei a insistir em acompanhá-lo num outro qualquer mês, para mostrar-lhe como é possível ainda hoje ver as ilhas  erguer-se violentamente do mar como no princípio  de tudo e dar-lhe a conhecer alguns lugares que poderiam ter alterado os rumos e o sentido da viagem vertical de Mayol antes de cruzar-se com esse vago professor Silveira, de quem se dizia que tudo copiava de Manfredi; poderei mesmo sugerir-lhe vários nomes para o café onde Mayol passa as tardes em cavaqueira com os seus amigos da tertúlia literária: Santamaro, Castelete, Cais do Galego ou Calhau, por exemplo, e não deixarei de levá-lo à Baía do Canto ou à ermida negra erguida junto ao que resta do navio  soterrado pela lava quando aproava a S. Jorge, aonde o apóstolo Mateus se dirigia para cobrar os impostos. E acabaremos por certo a provar um cavaco guisado na companhia de Almeida Firmino e António Nobre, se porventura a gastronomia politicamente correcta ainda não tiver substituído aquele pitéu por uma açorda cor-de-rosa.

Sei definitivamente que , depois disso, ele poderá escrever de novo As Ilhas Desconhecidas ou o Corsário das Ilhas e chamar-lhes livros seus, como o fizeram Raul Brandão e Vitorino Nemésio ou Pierre Menard em relação ao Quixote, e reclamar para si a autoria de uma frase simpática sobre a ilha em frente ou de uma outra segundo a qual tudo, para o ilhéu, se resume em longitude e apartamento, ainda que em castelhano as duas palavras pudessem reduzir-se a uma só: lejanía.

Sei também, e mais definitivamente ainda, que depois disso ele terá mesmo de escrever  novamente  as Ilhas de Matéria Nenhuma, de Nadine Villejean, que descobriu o Pico através de Manuel Machado e Aud Körbol e se perdeu nos mistérios da lava e do silêncio, sem ouvir as vozes do vento e do fogo nem compreender que, depois de Tabucchi ter escrito «Uma baleia vê os homens», o Capitão Ahab está morto e enterrado e não ressuscitará ao terceiro dia, e só mesmo Sena Jeter Naslund resgatará ao fundo da memória alguns traços do seu rosto diluído já no tempo e nas ruínas do afecto. E, ao reescrever esse livro, ele há-de redimir de vez o olhar perturbado de Nadine Villejean e descobrir que os seculares enforcamentos nas figueiras da Baía do Canto não passam, afinal,  de suicídios exemplares; e há-de contar ainda a história do homem que sonhou ter entrado numa grande livraria que vendia apenas um livro intitulado Terra de Lídia, de Maria Orrico,  e ao abri-lo deparou com um único parágrafo que dizia: Percebi que ninguém chega aos Açores mais do que uma vez. O primeiro passo é definitivo e irrevogável, marca-nos para o resto da vida o corpo em viagem. Depois, são apenas retornos, regressos, remorsos de terra húmida que não se deixa esquecer.

E quando,  um dia, ele deixar as Ilhas de Matéria Nenhuma, será para regressar ao seu texto «En las Azores» e reescrevê-lo infinitamente até já não distinguir os recuerdos verdaderos dos recuerdos inventados.

(Publicado originalmente em Atlântico Expresso. Ponta Delgada, 25.06.2001)
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